22 de dezembro de 2006

Natal Mendigo (2ªParte)

Do fundo da rua vejo aproximar-se uma rapariga saloia. À medida que se vai chegando mais perto, posso apreciá-la mais detalhadamente. É esguia, tem cabelo preto desalinhado, até ao pescoço, marcha de cabeça pendida para o lado e os olhos voltados para cima, um olho é semiaberto. Veste uma camisola verde, rota nos cotovelos, esbranquiçada aqui e além. As calças são pretas de fazenda, afunilando-se até aos tornozelos. Nos pés traz umas sapatilhas originariamente brancas em avançado estado de decomposição. A estouvada percorre desordenadamente a rua de um lado para o outro, estendendo a todos os trausentes um prato de plástico com algumas moedas. Acorre aqui, dirige-se para acolá, ali e aqui tentando interpelar, sem palavras, cada fiel que passa. Reitera a pantomina, insiste de mão estendida, tornando-se um obstáculo impertinente e quase inevitável, ainda que lhe tentem trocar as voltas. Mas ela é rápida e os seus braços longos como ramos estendem-se por toda a rua. Assim, a polidez e o pudor vão-lhe enchendo o prato.
Subitamente pára. Desprega os olhos do céu, volve a cabeça e fita atónita o asqueroso mendigo que definha no chão diante de si. Permanece lacónica. Imóvel como uma estátua, o olhar grave pousado sobre o madrigaz, como que acariciando-o. Sente compaixão dele e larga duas lágrimas, que deslizam descoordenadas pelo seu rosto. Murmura no seu pensamento: “Eu posso andar, mas tu estás tão debilitado que nem forças tens para marchar e pedir esmola.” Decidida, baixa-se e verte o seu prato de moedas para dentro da lata do mendigo. Depois, ergueu-se e continuou o seu percurso, descoordenada, mas mais ligeira, um sorriso quase imperceptível… até se perder na multidão.
Eu ainda fiquei em transe, sentia-me dormente, incapaz de raciocinar ou proclamar palavra. A mudez deu lugar à comoção.
Restabelecidos, finalmente, os sentidos, levantei-me, paguei a conta, meti o troco ao bolso, peguei nos meus sacos de compras e segui no sentido oposto, deste lado da rua, de olhos presos às montras, o pensamento ausente e mãos frias. Afinal, estava frio. E era Natal."


Martinho Soares
Porque para o Natal acontecer em nós é preciso deixarmos a alienação consumista para trás...
FELIZ NATAL

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